segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

CULTO DO URUBU

Vivendo sob os preceitos de um governo teocrático, o povo de Israel sabia que todos os preceitos da vida civil e os da vida religiosa procediam de Deus, e sem qualquer distinção ambos deveriam ser observados todo o tempo.
O secular e o religioso eram, portanto, avaliados por Deus de uma mesma forma. Ou seja, aquilo que o povo fazia no templo repercutia na vida civil, e o que se praticava na vida civil repercutia no templo.
A vida civil ou social do povo de Deus deveria ser séria e honesta, e quando ela se desviava o profeta exortava a todos para que voltassem ao comportamento correto.
Ouçamos as palavras de Isaias exortando o povo: lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade de vossos atos de diante dos meus olhos; cessai de fazer o mal. Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, repreendei ao opressor; defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas (Isa 1.16-17).
A inter-relação das esferas civil e religiosa exigia do povo um comportamento sério na vida, e não somente no momento de culto pois Deus as duas coisas como sendo uma única realidade.
O culto naquele tempo e, de resto, em todos os tempos, não era avaliado por Deus somente pelo seu momento solene, mas por todo o tempo da vida do próprio adorador ou cultuador.
Ao ir ao templo o cultuador levava consigo sua história e sua vida, pois não era possível entrar no santuário deixando para trás seus atos do dia a dia, os quais Deus consideravam como autorizadores ou reprovadores do culto.
Em razão disto antes mesmo de observar o culto Deus olhava para o cultuador, e isto para saber se sua vida civil estava de acordo com seus mandamentos santos, pois caso contrário o culto não tinha valor.
Este preceito de olhar primeiro para o cultuador antes mesmo de observar o culto por ele prestado, já vinha do início da história do homem pois no caso de Abel e Caim o relato bíblico demonstra que antes de aceitar a oferta de um e rejeitar a do outro, Deus aceitou um e rejeitou o outro.
Ao dizer que Deus se agradou de Abel e de sua oferta e desagradou-se de Caim e de sua oferta, a Bíblia demonstra a ordem correta como Deus avalia as coisas, ou seja, primeiro ele aceita ou rejeita a pessoa e depois aquilo que ela faz em termos de culto:
Agradou-se o Senhor de Abel e de sua oferta, ao passo que de Caim e de sua oferta não se agradou (Gn 4.4-5)”.
Aceitar e rejeitar o sacrifício de Abel e de Caim foi uma conseqüência direta de aceitar e rejeitar as pessoas que o ofereciam.
Ao tempo do profeta Isaias a multidão de sacrifícios feitos no templo não tinha valor algum, pois Deus não se impressionava com a sua quantidade. O que Deus buscava era qualidade de vida daqueles que apresentavam os sacrifícios.
Falando em nome de Deus Isaias diz: “De que me serve a mim a multidão de vossos sacrifícios, diz o SENHOR?” (Isa 1.10).
Com tais palavras Deus estava dizendo que o culto que os israelitas prestavam não tinha valor algum, de modo que se continuasse daquele jeito o melhor seria era parar com tudo.
Mesmo sabendo disto, o povo por muito tempo esteve envolvido com um culto deturpado, porque suas vidas particulares estavam fora dos preceitos divinos.
Então o Senhor decreta: Não continueis a trazer ofertas vãs; o incenso é para mim abominação, e as luas novas, e os sábados, e a convocação das assembléias; não posso suportar iniqüidade, nem mesmo a reunião solene (Isa 1.13).
As possíveis “caras de santo” que os cultuadores faziam na hora da reunião não tornavam o culto agradável a Deus, pois Deus sabia como estavam vivendo e, em razão disto, rejeitava o culto.
Chegou, enfim, o tempo em que Deus permitiu que o templo fosse destruído para que o culto cessasse, já que o povo insistia em ter uma vida mundana, pensando que isto não influenciaria diretamente na qualidade do culto.
Esta ação severa de Deus de deixar destruir o templo que Ele mesmo mandou edificar mostra o quanto a impureza cúltica desagrada a Deus, ainda que não incomode o homem.
Talvez possamos entender um pouco aquela situação olhando para o culto do urubu. Ele tem algum valor pedagógico e pode nos ajudar a repensar nossos rituais religiosos.
Um grupo de urubus resolveu fazer uma homenagem a um rico fazendeiro, homem bondoso que os havia acolhido em sua propriedade permitindo que vivessem ali sem serem molestados. Voaram em direção à sede da fazenda para manifestar ao seu amo sua gratidão. Lá chegando encontraram o fazendeiro esperando a reunião programada, pois os urubus já haviam enviado mensagem ao caseiro que fariam isto naquele dia.
Os urubus entraram na sala, tomaram seus lugares e deram início à celebração. Um deles tomou o microfone e começou a anunciar as coisas maravilhosas que o fazendeiro lhes havia feito.
Logo o grupo musical começou a entoar as músicas preparadas para ocasião, agitando-se de um lado para outro.
Saíram do meio da plateia seis urubus para apresentar a dança do urubu, pulando para cima e para o lado, como é do seu costume, para abrilhantar o culto e comover o fazendeiro. A coreografia foi fenomenal, é claro, na ótica dos urubus, mas o fazendeiro se mostrava quieto.
Um urubu mais anímico convocou os demais a dizerem palavras tais como: “o fazendeiro te ama e eu também”, e “você é importe para mim”. Comovidos e incitados os urubus começaram a se abraçar em calorosas “asadas”, alvoroço que só não foi maior porque um deles anunciou um novo cântico. 
Terminada a apresentação o principal do grupo convocou seus colegas para uma salva de palmas ao fazendeiro, provocando grande barulho enquanto batiam as asas em sinal de homenagem.
Urubus mais exaltados, como se diria, com “fogo”, ainda que com dificuldade pelo bico estranho que têm, começaram a assoviar.
Chegou, enfim, o momento mais esperado da reunião quando eles deveriam abrir um presente que levaram ao fazendeiro.
O presente estava embrulhado num papel muito bonito, de cor dourada, lacrado com fitas prateadas, o que indicava grande cuidado de quem o preparou.
O embrulho era tão bonito que dava dó de desmanchar o pacote, mas os urubus faziam questão de desembrulhá-lo bem próximo do fazendeiro para que ele participasse do ato que para os urubus seria o ápice do culto.
A expectativa é que o fazendeiro se surpreendesse de tal forma com o presente a ponto de aumentar sua benevolência ou “bênçãos” para com todos eles.
À medida que cortavam as fitas e remexiam o papel os urubus se agitavam, cantavam, batiam asas, associavam, faziam coreografias e falavam uma língua que ninguém entendia nada.
Quando finalmente o pacote foi aberto, houve um silêncio terrível no ambiente, pois algo estranho aconteceu. O fazendeiro começou a passar mal. Sem conter suas ânsias teve que deixar o local imediatamente.
E tudo isto porque de dentro do pacote começou a sair um cheio forte que tomou conta de toda a casa.
O estranho é que o cheiro que causava náuseas no fazendeiro dava satisfação aos urubus, que aspiravam profundamente como se quisessem apropriar-se cada vez mais daquele “aroma”.
Afinal, os urubus haviam levado para o fazendeiro, como prova de sua gratidão, uma caixa cheia de tripa de porco podre que lhes dava prazer em cheirar e comer.
Decepcionados com a reação do fazendeiro que teve que sair da sala pelo insuportável cheiro que o incomodava, os urubus começaram a perguntar qual seria a causa de tal reação do seu amo.
Enquanto lamentavam o ocorrido o criado do fazendeiro chegou ao ambiente e anunciou aos urubus que seu senhor não passava bem porque o cheiro lhe havia revolvido o estômago. E acrescentou: ele não gosta de carniça.
De eufóricos os urubus passaram a um estado de revolta e perguntavam entre si: como pode ser isto? Este é o prato que nós mais gostamos! Ele é do nosso inteiro prazer! Voamos grandes distâncias para encontrá-lo! Como pode o fazendeiro não gostar desta delícia?
O criado prosseguiu. “Amigos, a natureza do fazendeiro é diferente da de vocês, de modo que aquilo que vocês gostam ele abomina. E sendo assim, se vocês desejam agradar aquele que lhes permitiu morar em sua fazenda, o que eu acho certo, na próxima reunião ofereçam não aquilo que vocês gostam de comer, mas sim, aquilo que ele gosta de saborear. O nosso querido senhor tem uma dieta que deve ser respeitada.
Ao ouvirem estas palavras, uns ficaram revoltados, outros preocupados, e outros nem um pouco incomodados, e todos deixaram a sala.
O que o culto do urubu ensina?
Primeiro, que seres de naturezas diferentes têm visões, reações e apreciação diferentes em relação ao mesmo objeto. A natureza do fazendeiro era diferente da dos urubus;
Segundo, um objeto bem apresentado não tem sua natureza modificada pela beleza com que é ofertado, de modo que carniça embrulhada será sempre carniça e,
Terceiro, para agradar alguém é preciso oferecer o que ela gosta e não aquilo que admiramos.
Conclusão
O povo de Israel aprendeu que o culto a Deus deve ser santo, pois Deus é santo, e a santidade manifestada no culto é igual aquela que se vive fora dele, não havendo “momento santo” quando a vida como um todo não é santa.
No culto o que menos agrada ao Senhor é a estética, a organização da reunião, a base artística, e sim a condição em que se encontram os participantes do momento solene.
Como o fazendeiro, Deus dispensaria a boa música, a coreografia, os assovios, as palmas, os gritos em favor de algo que é próprio de sua natureza, ou seja, sanidade, e santidade na vida e não somente no templo ou coisa parecida.
Um culto bonito cheio de impureza faz Deus “sair” da sala de reunião.
Ao povo de Israel Deus observou: Não posso suportar iniqüidade associada ao ajuntamento solene (Isa 1.13).
Mais que atos de culto bem produzidos Deus se importa como o cultuador tem vivido, de modo que demasiada preocupação com a liturgia sem uma ortodoxia da vida pode, quando muito, agradar o cultuador mas não Aquele que é cultuado.
Lutero de Paiva Pereira



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