Vivendo sob os preceitos de um governo teocrático, o
povo de Israel sabia que todos os preceitos da vida civil e os da vida religiosa
procediam de Deus, e sem qualquer distinção ambos deveriam ser observados todo
o tempo.
O secular e o religioso eram, portanto, avaliados por
Deus de uma mesma forma. Ou seja, aquilo que o povo fazia no templo repercutia
na vida civil, e o que se praticava na vida civil repercutia no templo.
A vida civil ou social do povo de Deus deveria ser
séria e honesta, e quando ela se desviava o profeta exortava a todos para que
voltassem ao comportamento correto.
Ouçamos as palavras de Isaias exortando o povo: lavai-vos, purificai-vos, tirai a
maldade de vossos atos de diante dos meus olhos; cessai de fazer o mal.
Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, repreendei ao opressor; defendei o
direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas (Isa 1.16-17).
A inter-relação das esferas civil e religiosa exigia
do povo um comportamento sério na vida, e não somente no momento de culto pois
Deus as duas coisas como sendo uma única realidade.
O culto naquele tempo e, de resto, em todos os
tempos, não era avaliado por Deus somente pelo seu momento solene, mas por todo
o tempo da vida do próprio adorador ou cultuador.
Ao ir ao templo o cultuador levava consigo sua
história e sua vida, pois não era possível entrar no santuário deixando para
trás seus atos do dia a dia, os quais Deus consideravam como autorizadores ou
reprovadores do culto.
Em razão disto antes mesmo de observar o culto Deus
olhava para o cultuador, e isto para saber se sua vida civil estava de acordo
com seus mandamentos santos, pois caso contrário o culto não tinha valor.
Este preceito de olhar primeiro para o cultuador
antes mesmo de observar o culto por ele prestado, já vinha do início da
história do homem pois no caso de Abel e Caim o relato bíblico demonstra que
antes de aceitar a oferta de um e rejeitar a do outro, Deus aceitou um e
rejeitou o outro.
Ao dizer que Deus se agradou de Abel e de sua oferta
e desagradou-se de Caim e de sua oferta, a Bíblia demonstra a ordem correta
como Deus avalia as coisas, ou seja, primeiro ele aceita ou rejeita a pessoa e
depois aquilo que ela faz em termos de culto:
“Agradou-se o Senhor de Abel e de sua oferta, ao
passo que de Caim e de sua oferta não se agradou (Gn 4.4-5)”.
Aceitar e rejeitar o sacrifício de Abel e de Caim
foi uma conseqüência direta de aceitar e rejeitar as pessoas que o ofereciam.
Ao tempo do profeta Isaias a multidão de sacrifícios
feitos no templo não tinha valor algum, pois Deus não se impressionava com a
sua quantidade. O que Deus buscava era qualidade de vida daqueles que apresentavam
os sacrifícios.
Falando em nome de Deus Isaias diz: “De que me
serve a mim a multidão de vossos sacrifícios, diz o SENHOR?” (Isa 1.10) .
Com tais palavras Deus estava dizendo que o culto
que os israelitas prestavam não tinha valor algum, de modo que se continuasse
daquele jeito o melhor seria era parar com tudo.
Mesmo sabendo disto, o povo por muito tempo esteve
envolvido com um culto deturpado, porque suas vidas particulares estavam fora
dos preceitos divinos.
Então o Senhor decreta: Não continueis a trazer ofertas
vãs; o incenso é para mim abominação, e as luas novas, e os sábados, e a
convocação das assembléias; não posso suportar iniqüidade, nem mesmo a reunião
solene (Isa 1.13).
As possíveis “caras de santo” que os cultuadores
faziam na hora da reunião não tornavam o culto agradável a Deus, pois Deus
sabia como estavam vivendo e, em razão disto, rejeitava o culto.
Chegou, enfim, o tempo em que Deus permitiu que o
templo fosse destruído para que o culto cessasse, já que o povo insistia em ter
uma vida mundana, pensando que isto não influenciaria diretamente na qualidade
do culto.
Esta ação severa de Deus de deixar destruir o templo
que Ele mesmo mandou edificar mostra o quanto a impureza cúltica desagrada a
Deus, ainda que não incomode o homem.
Talvez possamos entender um pouco aquela situação
olhando para o culto do urubu. Ele tem algum valor pedagógico e pode nos ajudar
a repensar nossos rituais religiosos.
Um grupo de urubus resolveu fazer uma homenagem a um
rico fazendeiro, homem bondoso que os havia acolhido em sua propriedade
permitindo que vivessem ali sem serem molestados.
Voaram em direção à sede da fazenda para manifestar
ao seu amo sua gratidão. Lá chegando encontraram o fazendeiro esperando a
reunião programada, pois os urubus já haviam enviado mensagem ao caseiro que
fariam isto naquele dia.
Os urubus entraram na sala, tomaram seus lugares e
deram início à celebração. Um deles tomou o microfone e começou a anunciar as
coisas maravilhosas que o fazendeiro lhes havia feito.
Logo o grupo musical começou a entoar as músicas
preparadas para ocasião, agitando-se de um lado para outro.
Saíram do meio da plateia seis urubus para
apresentar a dança do urubu, pulando para cima e para o lado, como é do seu
costume, para abrilhantar o culto e comover o fazendeiro. A coreografia foi
fenomenal, é claro, na ótica dos urubus, mas o fazendeiro se mostrava quieto.
Um urubu mais anímico convocou os demais a dizerem
palavras tais como: “o fazendeiro te ama e eu também”, e “você é importe para
mim”. Comovidos e incitados os urubus começaram a se abraçar em calorosas
“asadas”, alvoroço que só não foi maior porque um deles anunciou um novo
cântico.
Terminada a apresentação o principal do grupo
convocou seus colegas para uma salva de palmas ao fazendeiro, provocando grande
barulho enquanto batiam as asas em sinal de homenagem.
Urubus mais exaltados, como se diria, com “fogo”,
ainda que com dificuldade pelo bico estranho que têm, começaram a assoviar.
Chegou, enfim, o momento mais esperado da reunião
quando eles deveriam abrir um presente que levaram ao fazendeiro.
O presente estava embrulhado num papel muito bonito,
de cor dourada, lacrado com fitas prateadas, o que indicava grande cuidado de
quem o preparou.
O embrulho era tão bonito que dava dó de desmanchar
o pacote, mas os urubus faziam questão de desembrulhá-lo bem próximo do
fazendeiro para que ele participasse do ato que para os urubus seria o ápice do
culto.
A expectativa é que o fazendeiro se surpreendesse de
tal forma com o presente a ponto de aumentar sua benevolência ou “bênçãos” para
com todos eles.
À medida que cortavam as fitas e remexiam o papel os
urubus se agitavam, cantavam, batiam asas, associavam, faziam coreografias e falavam
uma língua que ninguém entendia nada.
Quando finalmente o pacote foi aberto, houve um
silêncio terrível no ambiente, pois algo estranho aconteceu. O fazendeiro
começou a passar mal. Sem conter suas ânsias teve que deixar o
local imediatamente.
E tudo isto porque de dentro do pacote começou a
sair um cheio forte que tomou conta de toda a casa.
O estranho é que o cheiro que causava náuseas no
fazendeiro dava satisfação aos urubus, que aspiravam profundamente como se
quisessem apropriar-se cada vez mais daquele “aroma”.
Afinal, os urubus haviam levado para o fazendeiro,
como prova de sua gratidão, uma caixa cheia de tripa de porco podre que lhes
dava prazer em cheirar e comer.
Decepcionados com a reação do fazendeiro que teve
que sair da sala pelo insuportável cheiro que o incomodava, os urubus começaram
a perguntar qual seria a causa de tal reação do seu amo.
Enquanto lamentavam o ocorrido o criado do
fazendeiro chegou ao ambiente e anunciou aos urubus que seu senhor não passava
bem porque o cheiro lhe havia revolvido o estômago. E acrescentou: ele não
gosta de carniça.
De eufóricos os urubus passaram a um estado de
revolta e perguntavam entre si: como pode ser isto? Este é o prato que nós mais
gostamos! Ele é do nosso inteiro prazer! Voamos grandes distâncias para
encontrá-lo! Como pode o fazendeiro não gostar desta delícia?
O criado prosseguiu. “Amigos, a natureza do fazendeiro
é diferente da de vocês, de modo que aquilo que vocês gostam ele abomina. E
sendo assim, se vocês desejam agradar aquele que lhes permitiu morar em sua
fazenda, o que eu acho certo, na próxima reunião ofereçam não aquilo que vocês
gostam de comer, mas sim, aquilo que ele gosta de saborear. O nosso querido
senhor tem uma dieta que deve ser respeitada. ”
Ao ouvirem estas palavras, uns ficaram revoltados,
outros preocupados, e outros nem um pouco incomodados, e todos deixaram a sala.
O que o culto do urubu ensina?
Primeiro, que seres de naturezas diferentes têm
visões, reações e apreciação diferentes em relação ao mesmo objeto.
A natureza do fazendeiro era diferente da dos urubus;
Segundo, um objeto bem apresentado não tem sua
natureza modificada pela beleza com que é ofertado, de modo que carniça
embrulhada será sempre carniça e,
Terceiro, para agradar alguém é preciso oferecer o
que ela gosta e não aquilo que admiramos.
Conclusão
O povo de Israel aprendeu que o culto a Deus deve
ser santo, pois Deus é santo, e a santidade manifestada no culto é igual aquela
que se vive fora dele, não havendo “momento santo” quando a vida como um todo
não é santa.
No culto o que menos agrada ao Senhor é a estética,
a organização da reunião, a base artística, e sim a condição em que se
encontram os participantes do momento solene.
Como o fazendeiro, Deus dispensaria a boa música, a
coreografia, os assovios, as palmas, os gritos em favor de algo que é próprio
de sua natureza, ou seja, sanidade, e santidade na vida e não somente no templo
ou coisa parecida.
Um culto bonito cheio de impureza faz Deus “sair” da
sala de reunião.
Ao povo de Israel Deus observou: Não posso suportar iniqüidade
associada ao ajuntamento solene (Isa
1.13).
Mais que atos de culto bem produzidos Deus se
importa como o cultuador tem vivido, de modo que demasiada preocupação com a
liturgia sem uma ortodoxia da vida pode, quando muito, agradar o cultuador mas
não Aquele que é cultuado.
Lutero de Paiva Pereira
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