terça-feira, 22 de novembro de 2011

Homem: criatura e pessoa


         
“Formou o Senhor Deus o homem do pó da terra...” (Gn2.7) e, “Ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo...” (v.16). Estes dois versos da Escritura demonstram, e o fazem de forma bem objetiva, que o homem é tanto uma criatura, quanto uma pessoa. A condição de criatura advém do fato de que ele veio a existir por obra da ação criadora de Deus e, a condição de pessoa, porque ele recebe ordem ou orientação de Deus para agir. Ou seja, o homem não é um ser autômato, que age por simples impulsos “eletrocelestiais” que extrapolam ao seu controle, como se fosse uma máquina sem vontade. Entender o homem sob os dois aspectos – criatura e pessoa-, os quais se completam ao invés de mutuamente se excluírem, tem relevância para o desenvolvimento de uma vida equilibrada em todos os sentidos.
Negar o elemento pessoal que permeia a criatura humana, feita à imagem de seu Criador, para dizer o mínimo, é reduzi-la a uma condição que lhe retira faculdades inerentes ao seu ser. Retirar da pessoa sua característica de criatura é privá-la de uma origem nobre.  
Ao tratar do homem como criatura, Hoekema escreve: “Uma das pressuposições básicas da concepção cristã do homem é a fé em Deus como criador, que conduz à compreensão de que a pessoa humana não existe autônoma ou independentemente, mas como uma criatura de Deus”.
Todavia, quando volta sua análise para o homem sob o ponto de vista da pessoa, o mesmo autor registra: “Ser uma pessoa significa ter alguma forma de independência – não absoluta, mas relativa. Ser uma pessoa significa ser capaz de tomar decisões, de estabelecer objetivos e ser capaz de perseguir esses objetivos. Significa possuir liberdade – ao menos no sentido de ser capaz de fazer as suas próprias escolhas. O ser humano não é um robô cuja conduta é totalmente determinada por forças exteriores a ele; ele tem o poder de autodeterminação e de autodireção. Ser uma pessoa significa, para usar a expressão pitoresca de Leonard Verduin, ser uma “criatura de opção”.
Com facilidade da Escritura se nota que ela ao homem se dirige considerando-o como uma verdadeira criatura quando, por exemplo, lemos o discurso de Paulo no Areópago, em Atenas com relação a atuação de Deus: “porque ele mesmo é quem dá a todos a vida, a respiração, e todas as coisas. De um só fez todas as nações dos homens, para habitarem sobre toda a face da terra, determinando-lhes os tempos já dantes ordenados e os limites da sua habitação” (At.17.26-27). Na condição de criatura, o homem recebe de Deus a vida, a respiração e todas as coisas, já que por si mesmo não tem como gerar para si a vida, a respiração e tudo o mais que vem daquele que é o Senhor de tudo. Outras vezes o registro escriturístico não deixa dúvida de que o próprio Deus vê o homem como uma pessoa, dotado de liberdade para exercer escolhas, até mesmo aquelas que o levam a andar em direção oposta ao seu Criador, quando lemos: “Mas se vos parece mal servir ao Senhor, escolhei hoje a quem sirvais, se aos deuses dos amorreus, em cuja terra habitais. Porém eu e minha casa serviremos ao Senhor” (Js24.15). Ao convocar povo de Israel não seguir a Deus automaticamente mas sim escolhendo-O dentre os outros deuses Josué demonstra que não está tratando somente com criaturas mas também com pessoas que pensam, que avaliam, que optam e que decidem. Quando a seu tempo o pregador adverte: “Lembra-te do Teu Criador nos dias da tua mocidade...” (Ec12.1) ele o faz dentro do pressuposto que lembrar de Deus não é uma coisa compulsória da criatura, visto que agindo como pessoa o homem pode esquecer-se de Deus e deixar de considerá-lo em seus caminhos, ou então para Ele se voltar, dando-lhe importância em seus dias.
É magnífico pensar que o Criador, embora pudesse fazer criaturas condicionadas, optou por criá-las livres, e nisto está não só a beleza, como também a responsabilidade de ser assim.
Afinal, se o homem fosse somente criatura e não pessoa, como imputar-lhe responsabilidade pelos atos praticados? Com efeito, se o homem fosse condicionado a praticar o que pratica, teria justiça da parte de Deus em prescrever em sua Palavra: “que de toda palavra frívola que os homens proferirem hão de dar conta no dia do juízo” (Mt12.36) ou ainda, “de modo que cada um de nós dará conta de si mesmo a Deus” (Rm14.12)?
Dotado de características especiais pelo próprio Criador, o homem pode ouvir Sua ordem, entender seus preceitos e, querendo, obedecer a orientação, daí sua singela caracterização como pessoa.
Talvez pudéssemos dizer que a tentação ocorrida no Éden teve como proposta básica sacar do coração de Adão e Eva, como acabou ocorrendo, a idéia de criatura, visto que lhes insinuou que, transgredindo a ordem do Criador, eles seriam iguais a Deus: “sereis como Deus” (Gn3.5). Com a sugestão de poder ser igual a Deus, o homem perderia sua característica de criatura, colocando-se em notável destaque, muito maior do que aquele que ganhou ao ser criado por Deus.
É preciso que os cristãos, aos menos estes, recobrem a dignidade de serem, ao mesmo tempo, criatura e pessoa, pois isto tem implicações notáveis para a própria existência, e grande proveito para uma vida normal.
Quando no coração humano se agiganta o aspecto da criatura, a ponto de neutralizar a idéia de pessoa, corre-se o risco de responsabilizar Deus por atitudes pelas quais compete só ao homem responder, trazendo assim um nível de comodidade ou mesmo de acomodamento pessoal que a Escritura não abona para ninguém.
Muitas orações tendem a transferir para Deus atitudes que o crente, como pessoa, tem o dever de enfrentá-las ou concretizá-las, em evidente negativa ao seu aspecto de pessoa.
De outra forma, quando se eleva sobremodo a característica de pessoa, em detrimento da visão do homem como criatura, avantaja-se-lhe de tal forma a autonomia que Deus praticamente deixa de existir ou de ser responsável por coisas que somente Ele pode conceder ou fazer.
Aqui, a ausência de uma vida de oração e de leitura da Escritura é um indicativo a revelar que o crente tem-se por suficiente em si mesmo, demonstrando com isto que não se tem como uma criatura que depende em muitas coisas da ação benevolente do Criador em seu favor.
Estamos, na verdade, tratando de um paradoxo quando encaramos o homem como uma criatura dependente de Deus e ao mesmo tempo como uma pessoa capaz de tomar suas próprias decisões, e ser responsável por elas.
A Bíblia mostra que o homem tem sua autonomia sim, e agindo nestes termos responde integralmente por seus atos. Todavia, a mesma Escritura demonstra que o Criador está acima das criaturas e dá a elas aquilo que elas, a despeito de livres, não têm como buscar, encontrar, produzir ou realizar.
É significativamente maravilhoso pensar que Deus, na qualidade de Criador fez o homem dotado de faculdades que o capacita a andar, tanto em direção aos seus iguais, quanto em direção ao seu Criador, ou mesmo em direção oposta a Ele, e mesmo neste último caso, com as bênçãos dEle provindas através do que se convencionou chamar de graça comum, que são “as bênçãos naturais que Deus derrama sobre o homem na presente vida, apesar do fato de que o homem perdeu o direito a elas e se acha sob sentença de morte. A obra da graça divina se vê em tudo que Deus faz para restringir a devastadora influência e desenvolvimento do pecado no mundo, e para manter, enriquecer e desenvolver a vida da humanidade em geral e dos indivíduos componentes da raça humana”.
Através do profeta Deus exorta o seu povo: “eis o caminho, ainda nele” (Isa 30.21). A primeira parte da orientação demonstra que o povo é tratado como criatura, eis que não podendo achar o caminho por si só e recebe de Deus a orientação necessária a descobri-lo, ou seja, eis o caminho. Na segunda parte, o povo é tratado como pessoa, visto que Deus o convida a andar no caminho, já que não o fará simplesmente porque dele tomou conhecimento mas sim, a partir do momento que optou por ele.
Considerando o homem, simultaneamente, como criatura e pessoa diante de Deus, podemos destacar três aspectos distintos desta relação: 1º ) existem coisas que somente Deus faz; 2º.) há situações que o homem e Deus agem conjuntamente e, 3º.) têm atitudes de competência exclusiva do homem.


1 – Ações de iniciativa exclusiva de Deus
Há uma esfera de atuação reservada exclusivamente a Deus, inclusive naquilo que envolve o próprio homem, diante da qual suas criaturas estão totalmente impossibilitadas de agir ou agir com Ele. Assim, sem pretender esgotar a questão, é possível detectar claramente pela Escritura este campo reservado ao Senhor, e por Ele mesmo reservado, visto ser o Soberano, pré-existente e Eterno Deus da glória.
Assim, podemos ver Deus agindo com notável exclusividade quando cria o homem lá no Éden; quando julga o homem através do Dilúvio; quando chama Abrão para dele fazer uma grande nação; ao tempo em que dá a Moisés os Dez mandamentos e lhe mostra a planta do Tabernáculo; ai capacitar os profetas a falarem em Seu nome; agitando o mar para acordar Jonas do sono da desobediência. Na esfera do Novo Testamento, o envio do Filho Unigênito para salvação dos perdidos é atitude somente de Deus; a vivificação daquele que está morto em delitos e pecados é obra exclusiva daquele que vive; mandar chuva sobre justos e injustos compete só ao Criador; chamar a existência as coisas que não existem é atribuição única do Eterno; julgar os homens e conceder galardões aos redimidos está reservado ao Justo Juiz; fazer nova todas as coisas está afeto ao que nunca envelhece e não sofre sombra de variação; inspirar os homens para escreverem a Escritura é ação do Espírito Santo; perdoar os pecados é competência daquele que foi ofendido pelo pecador; trazer a Jesus Cristo dentre os mortos somente Deus pode fazer, e o fez sem a ajuda ou parceria de ninguém. Indefinidamente poderíamos catalogar ações exclusivamente de Deus, e ficaríamos admirados de ver que temos um Deus tão magnífico, ao qual podemos chamar de Pai pois fomos feitos seus filhos através de Cristo Jesus. E isto também é obra exclusiva dEle.

2 – Ações de Deus compartilhadas com o homem
Deixando agora a esfera de atuação exclusiva de Deus, pensemos um pouco a respeito do campo de ações partilhadas por Deus e pelo homem.
A santificação está adstrita à ação conjunta do Espírito Santo e do homem, pois ninguém é mais consagrado do que deseja ser e do que o Espírito o capacita ser; a mortificação dos feitos da carne também requer a participação do crente e do Espírito, visto que é por intermédio deste que aquele subjuga os feitos carnais; o conhecer a vontade de Deus implica na disposição do homem de buscá-la e na do Espírito de revelá-la; a salvação dos perdidos é uma ação do homem, que anuncia a Palavra e do Espírito que aplica a Palavra anunciada ao coração do incrédulo; ir a Cristo compete ao homem que se arrepende dos seus pecados, se volta do mal caminho e a Deus que o leva a tal encontro; frutificar implica na permanência do crente na Videira e da Videira lhe transmitir a “seiva” necessária.

3 – Atitudes privativas da competência humana.
Todavia, existe um espaço dentro da vida cristã que o homem age sozinho e deve assim fazer, porque é responsabilidade exclusiva sua, e não tem como partilhá-la com Deus, visto que envolve sua vontade e disposição pessoais. Assim, ler a Bíblia é ação eminentemente do homem; jejuar, orar, contribuir, afastar-se do caminho do mal são práticas de cunho pessoal; não apagar o Espírito; acolher os necessitados; cantar louvores a Deus; deixar de falar a mentira; perdoar; negar-se a si mesmo e tomar a cruz também estão no âmbito da disposição do indivíduo; filhos honrar os pais; empregados serem responsáveis; patrões tratarem bem seus empregados não são atitudes de Deus mas sim, da pessoa que foi regenerada; meditar na Palavra de Deus; pensar nas coisas do alto; falar a verdade, etc., denotam uma ação eminentemente humana.

Conclusão
Devemos buscar o necessário equilíbrio para vivermos uma vida cristã que respeite estas três diferentes faces, a saber, considerar as ações de iniciativa exclusiva de Deus, as ações de Deus e do homem e, as ações de competência exclusiva do homem, de maneira que possamos depender de Deus naquilo que compete somente a Ele realizar; depender de Deus ao mesmo que nos esforçamos por realizar a parte que nos compete realizar com Sua ajuda e, finalmente, sermos pessoalmente responsáveis por aquilo que podemos e devemos fazer.
Soberania de Deus e responsabilidade humana são paradoxos que devem ser mantidos em tensão, e todas as vezes que aumentamos um em prejuízo do outro, tudo se torna estranho.
Se retirarmos a responsabilidade humana, Deus se torna responsável por todos os nossos atos, inclusive por termos uma salvação não desenvolvida, o que é um absurdo pensar assim. Por outro lado, se retirarmos a soberania de Deus, isto faz com que nos tornemos verdadeiros deuses, já que nos apresentaremos como capazes de realizar tudo e todas as coisas por nossas próprias forças, o que também é um absurdo.

A teologia do determinismo, segundo a qual Deus determinou tudo, inclusive as mínimas ações humanas retira do homem a responsabilidade de pessoa, robotiza seus feitos, e em nada glorifica a Deus.
Em contrapartida a teologia da deificação, através da qual o homem perde seus atributos de criatura para assemelhar em tudo ao seu Criador, vangloriando-se de feitos que vêm de Deus, que deve ser louvado para sempre, tem riscos ainda maiores.

Somos normais quando reconhecemos ser criatura e pessoa ao mesmo tempo. Deus nos criou para agirmos como pessoas sensatas, reconhecendo Deus como Senhor, a quem devemos obedecer.
Se no Éden a tentação foi a proposta de Satanás para tornar o homem somente pessoa, induzindo-o a negar seu caráter de criatura, em certos ambientes religiosos a proposta atual às vezes se mostra invertida, levando seus adeptos a negarem sua pessoalidade, tornando-os mera criaturas.
Leiamos a Bíblia como pessoa, e como criatura dependamos do Espírito para iluminar o nosso entendimento sobre aquilo que temos colocado diante dos nossos olhos.
Oremos como criaturas, e obedeçamos como pessoas os claros preceitos da Escritura, para que tenhamos, em tudo, ao menos uma aparência de um ser completo, a saber, criatura e pessoa.

Lutero de Paiva Pereira


 Hoekema, Antony – Criados à Imagem de Deus – Cultura Cristã – 1ª ed. P. 16
 Ob. Cit. P. 17
 Teologia Sistemática, Louis Berkhof, 1992, p.436

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